Renato de Oliveira Camargo Júnior.
“Depois disso o Senhor designou outros setenta e dois e os enviou dois a dois, adiante dele, a todas as cidades e lugares para onde ele estava prestes a ir. E lhes disse: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Portanto, peçam ao Senhor da colheita que mande trabalhadores para a sua colheita.” (Lucas 10:1-2)
No meio evangélico, inúmeras expressões vêm e vão como fruto das diversas ondas de pacotes eclesiásticos que chegam da América do Norte como uma promessa revolucionária para viabilizar o crescimento da igreja. Mas diferente do que muitos imaginam, o termo missional, não é uma delas.
Antes do termo eclodir no mundo cristão popular foi utilizado em círculos teólogos protestantes históricos e ecumênicos ligados à “missio dei” – teologia que entende que Deus não apenas faz missão, como algo que lhe foi exigido por causa do pecado humano, mas porque em sua essência Ele é um ser missionário.
Um dos grandes expoentes do movimento da igreja missional foi Leslie Newbigien. Um missionário que trabalhou durante muitos anos na Índia e que ao retornar para o seu país de origem, chegou à uma conclusão estarrecedora: os Estados Unidos da América eram tão carentes da evangelização quanto a Índia.
Daquela constatação em diante, Newbigien tornou-se um dos principais articuladores do pensamento da igreja missional e escreveu inúmeros livros sobre o assunto. Um deles acabou sendo recentemente traduzido para o português e pode ser encontrado em quase todas as livrarias evangélicas: “O evangelho em uma sociedade pluralista”.
Mas se já temos a expressão “missionário” porque precisamos do termo “missional”? O termo missionário teve origem no período da cristandade, quando a igreja e o Estado eram uma coisa só. E fazer missão naquele período passou a ser sinônimo de ampliar as fronteiras do Estado mediante as investidas militares.
Daquele período em diante um elemento depreciativo do conteúdo bíblico a respeito da missão passou integrar o termo missionário: a idéia de que missão é algo feito por alguns poucos corajosos que se aventuram a trabalhar em lugares distantes para expandir as fronteiras da fé.
Certamente o trabalho de missionários corajosos que evangelizam em lugares distante é importante. Contudo, o que não poderia ter acontecido é a diminuição da responsabilidade missionária dos demais discípulos de Cristo que ficam nas cidades consideradas já alcançadas. E investir financeiramente naqueles que vão longe não diminui a nossa responsabilidade onde estamos.
Desta forma, ser missional, primeiramente, é compreender o sentido da missão a partir do programa estabelecido em Atos 1:8 “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra”.
O imperativo para que a igreja servisse como testemunha de Cristo “em Jerusalém” (local onde a igreja se encontrava) indica a responsabilidade que cada discípulo de Cristo tem no local onde foi colocado por Deus. Em outras palavras, se Deus nos colocou num escritório de advocacia, que seja com o intuito de fazermos missão; se num hospital público, que seja com o propósito de tornarmos o amor de Cristo conhecido; se numa universidade privada, que seja também com o propósito de fazermos discípulos d’Ele.
O imperativo para que a igreja servisse como testemunha “na Judeia e Samaria” aponta para a importância de irmos na direção de pessoas que apesar de próximas, pertencem a grupos diferentes. Em nossas cidades esses grupos têm sido chamados de tribos urbanas, todos com sua linguagem própria, com suas vestimentas próprias, com seus hábitos próprios. E por serem diferentes às vezes acabam sendo desprezados. Contudo, nossa responsabilidade diante de Cristo é a de alcança-los intencionalmente com o evangelho.
O imperativo para que a igreja servisse como testemunha “até os confins da terra” traz à nossa mente a responsabilidade de irmos até os lugares remotos, onde não há ninguém que fale, que explique as escrituras e que pastoreie na força do Senhor. Esta é a evidência de que a igreja missional não é inimiga das missões transculturais, antes, sua principal aliada.
Mas o termo missional não vem apenas para corrigir esta disfunção relacionada a ao local da proclamação verbal do evangelho de Jesus. Vem também para corrigir a idéia de que fazer missão resume-se a salvar pessoas individualmente da perdição eterna. Para entendermos o aspecto mais amplo da missão da igreja, precisamos voltar ao conceito da missio dei.
A missão de Deus descrita nas escrituras não resume-se a salvação de indivíduos que foram condenados à morte física, espiritual e eterna por causa do pecado. Ela compreende também a restauração de tudo o que foi corrompido pelo pecado: o ser humano, as relações interpessoais, as estruturas sociais, e a própria natureza (Romanos 8).
Da missio dei advém a missio Christus (missão de Cristo). E o que Cristo faz? Trabalha pela restauração de todas as coisas, assim como o seu Pai. Vejam isto na declaração de missão de Jesus contida em Lucas 4: 18-19: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor”.
Segundo este texto, o ministério de Jesus se deu em três dimensões:
- A dimensão verbal: “pregar boas novas… proclamar liberdade”.
Tanto o verbo evangelizo, quanto o verbo Kerisso, referem-se essencialmente à proclamação verbal de uma boa notícia. Em especial aqui sobre a chegada do messias prometido e a sua obra de reconexão com o Deus Pai. Isto mostra que a missão transformadora de Jesus envolve a palavra dita em alto e bom tom.
- A dimensão social: “pragar boas novas aos pobres…”
Não há dúvida alguma de que os pobres citados aqui em Lucas são os pobres de toda natureza, inclusive os pobres economicamente falando. Em vários momentos deste evangelho Jesus aparece inspirando os ricos a cuidar desses desfavorecidos.
- A dimensão sistêmica/ estrutural: “para libertar os oprimidos”.
A palavra “oprimido” (tethrausmenoi) é extraída provavelmente de Isaías 58 e tem um contexto todo especial: o do sofrimento gerado pelas estruturas sociais de exploração do pobre pelo rico, que os submetem a trabalhos forçados sem a devida remuneração, cuidado ou respeito. Jesus se envolveu com isto também!
Donald Senior e Carrol Stuhlmueller em sua obra intitulada “The biblical Foundations for mission” afirma a importância da compreensão das três dimensões da obra de Cristo para a subsequente compreensão da missão da igreja: “A missão da comunidade cristã… é uma missão de salvação, como foi a obra de Cristo.”
David Bosh amplia este conceito em sua obra intitulada “Missão Transformadora” afirmando que: “Missão denota a tarefa global que Deus incumbiu à igreja para a salvação do mundo, mas sempre relacionada a algum contexto específico de mal, desespero e perda de norte (como Jesus definiu sua missão, de acordo com Lucas 4:18).” E reafirma ainda que: “A salvação implica a reversão de todas as más consequências do pecado, tanto contra Deus, quanto contra o próximo. Ela não tem só uma dimensão “vertical”.
Da Missio Dei (Missão de Deus) e da Missio Christus (Missão de Cristo) deriva-se a Missio Eclesia (Missão da Igreja). Ela não é um acessório de luxo para igrejas que não tem nada mais interessante para fazer, mas uma responsabilidade ligada à sua própria essência. Nesta direção afirmou o teológico alemão dietrich bonhoeffer: “A igreja que não está ligada à missão não é igreja”.
Essas palavras nos alertam para o perigo de vivermos na cidade como um verdadeiro clube religioso onde as pessoas que se conhecem e se apreciam convivem “em nome de Jesus”. Revolucionariamente, precisamos de uma atitude pró-ativa diferente, visando a expansão do Reino de Deus, em continuidade à missão de Jesus, pelo poder do Espírito Santo, até que todas as coisas sejam restauradas para a Glória do Deus Pai. Isto é ser missional.